quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Opinião: árbitro de vídeo não pode ofuscar brilho do título do Cruzeiro na Copa do Brasil

Equipe de arbitragem composta por 18 pessoas na final do torneio quase tirou a conquista de um time que foi cirúrgico


É uma imagem já bastante familiar. Dois dedos indicadores traçam no ar um retângulo imaginário. A representação da tela do todo poderoso vídeo mágico que salva a arbitragem de cometer qualquer erro capital vai tentar ocupar o espaço das lembranças da decisão da Copa do Brasil de 2018.

É preciso resistir.

Aquela tela opaca vai tentar se sobrepor às verdadeiras forças que estiveram em ação no irrepreensível gramado da Arena Corinthians. Mas uma telinha daquele tamanho não pode esconder atrás dela um gigante como Dedé. Um alicerce de segurança defensiva com 1,92m de talento, garra e tempo de bola mais preciso que os melhores relógios suíços. Dedé ganhou absolutamente todas as disputas.

Por trás daquela televisãozinha que, num jogo ideal, passaria os 90 minutos apagada, uma luz forte brilhou em Itaquera na noite de quarta-feira. Era uma luz azul. Azul celeste de um céu estrelado, onde brilharam forte Thiago Neves, Arrascaeta, Fábio e mais uma constelação disposta estrategicamente por Mano Menezes, o Senhor Copa do Brasil com seus três títulos em quatro finais por dois clubes diferentes.


Uma visão falsa da história vai tentar se impor. A versão de um jogo decidido pela tecnologia vai fazer malabarismos para dominar a narrativa, como uma fake news que se apresenta como verdade inquestionável naquela mensagem que você recebe no telefone que carrega no bolso.

É preciso resistir.

A verdade é outra. O Cruzeiro chegou ao sexto título de Copa do Brasil e se tornou o maior vencedor de torneios nacionais dos anos 2000 graças à sua reserva de talento. O uruguaio Arrascaeta atravessou o mundo, do aeroporto de Narita até Guarulhos, onde pousou poucas horas antes do jogo, para fazer o gol do título. O 2 a 1 saiu em um contra-ataque que é o Cruzeiro de 2018 resumido em uma jogada. Bola roubada na intermediária de defesa, passe vertical direito no atacante mais avançado e aí só mais um toque rápido para deixar o goleiro adversário impotente diante do gol inevitável.

Repasso o jogo mentalmente e às vezes sou tomado por um susto. Estou cego! Será que a única visão clara é a do árbitro quando contempla uma tela colocada à visão de todos e ao mesmo tempo onde ninguém mais pode ver? De lá, emana uma luz tão forte que é capaz de ofuscar o que de fato deve ser contemplado. Mas como poderia uma tela encerrar tudo que envolve um jogo de futebol? Não pode.

É preciso resistir.

Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira? É um exercício retórico apresentado por José Saramago no clássico Ensaio Sobre a Cegueira. Na decisão da Copa do Brasil, eram 18 os integrantes da robusta equipe de arbitragem, do apitador principal ao operador de replay em câmera lenta numa sala com ar condicionado e isolamento de bom senso.

Por isso, é preciso resistir. O torcedor e, isso é determinante, o árbitro em campo. Ele precisa resistir à tentação de apelar para a certeza incerta das imagens reprisadas e confiar nos instintos antes de se submeter à questionável infalibilidade dos replays. Saber interpretar os sintomas e apresentar um diagnóstico imediato, essa é a qualidade de bons médicos e também dos bons árbitros.

Talvez o juiz se sinta como o único em campo com visão perfeita. "É que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos", diz a personagem que enxerga no livro de Saramago. Ela entende que ver é muito mais que um privilégio, enxergar bem é uma responsabilidade.

É preciso resistir. Não se deve permitir que a cegueira alheia seja contagiosa.

* Tiago Maranhão, 40, é apresentador do Troca de Passes, do SporTV

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